A cidade que grita, mas que ninguém escuta.

 


    Há muito tempo eu estou observando como está difícil viver na cidade e aí eu fui tentar analisar com mais atenção para ver qual é a causa dessa dificuldade, desse desânimo de estar no meio disso tudo. Será que é por causa do trânsito ou é porque tem muita gente? Será por causa do corre-corre do dia a dia? Que agonia é essa que tanto me faz mal no dia a dia da cidade?

    E vocês não vão nem acreditar o que foi que eu descobri. Sim é o cotidiano da cidade que me faz mal o que faz o corpo doer e que me deixa irritado agoniado triste, sem saber o que fazer e às vezes vêm junto o sentimento de decepção, impotência, pois parece que tudo está fora de ordem. E é exatamente esse ponto. Algumas coisas de fato estão fora de ordem e para quem é autista, a ordem, ela é necessária, ela é fundamental. O cumprimento de regras o certo no lugar certo o respeito às regras a ordem das coisas, saber como as coisas deveriam funcionar nos ambientes públicos e particulares, mas a cidade não é assim. A cidade é feita de gente e gente bagunça as coisas desrespeita as regras, furam filas, aceleram os carros além da velocidade permitida, fazem ultrapassagens proibidas, não respeitam os pedestres nem quando estes estão na faixa destinada a travessia da via, aliás, alguns pedestres também não respeitam o sinal fechado para eles e atravessam a faixa quando a preferência do carro. É gente que anda com cachorro na rua para que o animal (o de quatro patas) possa fazer suas necessidades, mas não limpam a sujeira deixada pelo cachorro, fora o cheiro de xixi aumenta em dias ensolarados, mas ninguém se preocupa. Está tudo certo! Calçada que fedem urina de cachorro e seus restos de fezes, pessoas que gritam, que atropelando umas às outras num ritmo alucinado e parece que está tudo certo. Patinetes de empresa privada que usam espaços públicos como vitrine, que ficam jogadas nas calçadas que deveriam ser prioridade para os transeuntes. É o cotidiano do corre-corre, é um cotidiano que maltrata, que machuca.

    Acho que isso deveria indignar qualquer pessoa, acho que isso deveria tirar qualquer pessoa do seu plano de estabilidade, mas quando se trata de uma pessoa autista, meu Deus! A coisa toma uma proporção incontrolável eu nem sei se incontrolável seria a palavra, toma uma proporção, digamos, avassaladora em termos de desajuste emocional. Como pode uma pessoa não respeitar a faixa de pedestre, como pode uma pessoa buzinar sem a mínima necessidade, como pode uma pessoa fazer uma ultrapassagem em local proibido, fora aquelas que estacionam o carro em vagas exclusivas para pessoas com deficiência bem como nas vagas para pessoas com mais de 60 anos. A cidade é muito bruta ou será que nós que embrutecemos a cidade?

    Essa brutalidade toda, esse caos e essa desordem, para quem precisa da rotina do certo no certo para quem precisa que as coisas fluam dentro das normas e regras porque aprendeu a vida toda que as normas e regras é que devem ser seguidas e respeitadas (se não pra quê existir?), é um transtorno. Para quem está dentro do espectro isso faz um mal danado, dificulta inclusive fazer uso da cidade, como exercício de cidadania. Uma ida ao supermercado que deveria ser algo simples, corriqueiro, se torna uma aventura brutal e depois dessa saída para o supermercado você só quer ficar dentro de casa quieto descansando sem saber ao certo o que foi que te cansou.

    Só quem sente o transtorno do espectro autista nesse nível pode compreender como a cidade e os seus desajustes causam uma desordem imensa em nosso corpo e em nossa mente. Não se trata somente de barulhos, sons altos, gritos inoportunos, é isso e muito mais. Trata-se, também, de uma desordem comum para muitos mas que machuca dói desestabiliza e torna mais difícil o que já não era fácil a vida de um autista.

    Vamos lá vamos para as soluções do problema. Quem dera tivéssemos um problema, são problemas, no plural. Deste modo o que fazer, como minimizar esse sofrimento das pessoas com autismo? Vamos deixá-las trancadas em casa, já que a cidade é assim mesma? Eu penso que o caminho deve ser outro.

    É interessante porque enquanto eu escrevo esse texto a minha cabeça fica trabalhando nas lembranças e me recordei, por exemplo, de um evento público, a chegada do Papai Noel aqui na cidade (Florianópolis-SC), na praça central, várias famílias e muitas crianças todas com os olhos fixos no palco esperando a chegada do “Bom Velhinho”, o que eu vejo, eu vejo vário drones sobre a cabeça dessas pessoas, equipamentos usados para filmar o evento. Mas isso não é proibido? Se não é, não deveria ser, por uma questão de segurança de todos? Está vendo como uma coisa fora da ordem pode tirar toda a atenção de uma pessoa autista, o evento virou uma torcida para que o drone não caísse e não machucasse ninguém, e o resultado foi (literalmente) uma grande dor de cabeça que só passou depois de remédios e cama.  Existem muitos outros problemas que tiram de mim a vontade de viver a cidade, é caixa de som nas praias, é caixa de som nas ruas com gente anunciando os mais vaiados produtos, de almoço a calcinhas na promoção, música alta nas caixas de som nas portas das lojas, que mais parecem boates que ficam em concorrência constante numa rua já barulhenta pelo número de pessoas que transitam de um lado para o outro.

    Para que mais barulho para que mais gritaria? As ondas do mar fazem um som tão gostoso para que levar a caixa de som para a praia? Se não pode cachorro na praia por que que as pessoas insistem em levar os cachorros para a praia? E se não vão fazer nada, com quem desrespeitas as regras, por que criar uma lei proibindo o cachorro na praia? Tem coisas que não fazem muito sentido, eu não vou nem dizer que não faz sentido para quem é neuro divergente porque eu acho que tem muita coisa que não faz sentido para um monte de gente, o problema é que a gente não é ouvido tem barulho demais na cidade e ninguém consegue ouvir ninguém.

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